Conto – A Recriação

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Tão logo termine o livro Submundo, creio que esse será meu próximo trabalho. Esse conto servirá como um prefácio. Boa leitura!

 

O celular vibrava insistentemente.

Em todas as chamadas, Adam apertava a tecla vermelha que cancelava a ligação. Estava em uma importante reunião e não poderia atendê-las.

As ligações continuavam mas ele estava decidido; precisava se concentrar no assunto em debate e não poderia falhar diante do novo chefe. Estavam acontecendo várias apresentações de setores chaves da empresa e o departamento de tecnologia estava sendo citado por todos. Adam, como um bom engenheiro social, não estava só atento ao que seus companheiros falavam mas também nas reações corporais do seu superior. Estudava-o, mas aquele celular não parava de vibrar, as ligações se sucediam e já consumiam uma atenção maior do que ele normalmente daria.

Em um momento de absoluto silêncio dentro da sala, o telefone vibrou capturando a atenção de todos os presentes. O chefe olhou para Adam durante três longos segundos, olho no olho. Não existe gesto mais claro de desaprovação do que essa encarada, fixa e silenciosa; algo que remete aos primórdios da evolução humana quando ainda estávamos restritos ao uso do hipotálamo. Nada é mais perigoso do que um ser humano usando a parte mais primitiva do seu cérebro. É um aviso direto sem necessidade de interpretação.

O celular vibrou novamente e Adam sem tirar os olhos do chefe cancelou a ligação. O chefe levantou a mão espalmada dando a entender ao palestrante que ele deveria parar. As pessoas da sala olharam para o chefe que nesse momento virou seu corpo em direção a Adam e disse com uma voz baixa e calma:

– Atenda a porra do celular. É obvio que algo está acontecendo.

Adam abriu o flip e constavam 37 ligações não atendidas. A luz amarela acendeu quando ele percebeu que eram oriundas de várias pessoas. Realmente algo estava acontecendo.

Ele pediu licença e saiu da sala já sem se importar com o chefe ou com a reunião. Ao fechar a porta, o telefone vibrou novamente. Adam pressionou a tecla verde e em silêncio pôs o telefone no ouvido. No outro lado, alguém sôfrego repetia freneticamente:

– Alô? Alô? Alô? Alô? Adam, é você? Alô?

Adam pausadamente respondeu.

– O que, diabos, está, acontecendo!?

– Liga o caralho da televisão em qualquer canal.

Adam baixou o braço tirando o telefone da orelha e ainda tentando entender a situação. Se perguntou onde ligaria uma televisão; estava no trabalho e ali só existiam computadores. Percorreu mentalmente toda a empresa e lembrou que na recepção existia uma grande TV de plasma na parede que passava seus dias reproduzindo um filme corporativo. Adam rapidamente foi passando pelas baias através do andar em direção a recepção. Chegou em frente a TV que estava ligada e sem som. As recepcionistas nada repararam e continuavam nos telefones. Adam passou as mãos pelas duas laterais da televisão ao mesmo tempo. Descobriu onde estavam os botões de controle. Aproximou-se para ler as pequenas letras, identificou o botão “SOURCE” e mudou a origem do sinal. O filme corporativo se foi e agora a tela estava toda chuviscada. A intensidade do sinal mudava sistematicamente mostrando que Adam já estava alternando os canais em busca de uma imagem qualquer. A televisão não deveria ter antena.

Súbito e nítido, um edifício apareceu na tela. No rodapé por sobre uma faixa vermelha, várias palavras passavam apressadamente próximo a logomarca da Fox News. Era a transmissão de uma emissora jornalística, mas nada estava acontecendo na imagem; ele percorreu o olho por toda a tela e não encontrou algo que explicasse aquilo. O prédio lhe era familiar e sentiu a cabeça pulsar quando entendeu que aquele era o edifício onde ele estava. Movimentou seu braço e já estava colocando o telefone novamente no ouvido quando percebeu uma leve mudança em alguns pixels de uma região da imagem. A câmera da Fox News fez um zoom muito rapidamente e a imagem ficou desfocada. Em poucos segundos, o foco foi se ajustando e Adam sentiu o coração congelar. A televisão mostrava um homem de pele muito clara de pé no parapeito do edifício, de costas para a rua e ao que parecia, olhando para dentro das enormes janelas de vidro. Adam estava com a respiração suspensa, a boca levemente aberta, todas as pupilas dilatadas. Não acreditava no que via e um pavor primitivo arrepiou os pêlos da sua nuca.

O homem tinha uma enorme par de asas brancas.

O celular bateu no chão ainda aberto e com a ligação ativa tirando a recepcionista de seu estado de choque. Uma lágrima escorria pela sua face.

Adam correu em direção a janela e com toda força abriu as cortinas. Deu dois passos para trás e caiu no chão com uma expressão de horror nos olhos. Ali no parapeito a poucos metros dele estava a criatura olhando-o fixamente com um rosto firme e inexpressivo. Era enorme, forte e belo tal como uma estátua grega; devia ter mais de três metros de altura e suas asas quase abraçavam o andar.

O anjo esticou seu braço direito e lentamente atravessou o vidro sem quebrá-lo. A ponta de suas asas também entraram no andar e começaram a se posicionar em volta de Adam que percebeu o movimento com os cantos dos olhos. Seu corpo estava paralisado de medo. O anjo continuou projetando-se para a frente e dobrou levemente seus dedos de maneira que o indicador ficasse mais proeminente. Adam, ainda no chão envolto pelas sombras das asas, apoiou a mão direita no solo e esticou sua mão esquerda em direção ao anjo. Nesse instante, seu cordão com um crucifixo saiu da blusa e o anjo ao ver a cruz, esboçou um leve sorriso com o canto da boca no mesmo momento em que seus dedos se encontraram.

Adam sentiu milhares de vozes falando ao mesmo tempo em sua cabeça, de uma forma tão intensa que ele não pode suportar e desmaiou. O anjo puxou seu braço com velocidade como se tivesse levado um choque, olhou para sua mão com um pouco de espanto e depois olhou por alguns segundos para Adam no chão. O leve sorriso voltou ao seu rosto.

As asas se recolheram e o anjo novamente de pé no parapeito, deixou o corpo cair para trás no espaço em direção ao chão. Lentamente abriu suas asas e planou pela avenida principal em meio aos letreiros e ao trânsito paralisado. Um silêncio pairava sobre a cidade, as pessoas estavam atônitas com o que viram. Praticamente em todas as janelas dos prédios existiam pessoas olhando o anjo já pequeno no horizonte sobrevoando o mar.

Adam levantou-se tonto. Apoiou a mão na janela e viu que o vidro não se quebrara, estava derretido nos pontos onde o anjo o tocara. Tentou vislumbrá-lo mas nada viu. O estacionamento no térreo estava parcialmente ocupado e Adam falando sozinho disse que a distribuição estava errada.

Um grupo de helicópteros pairava ao longe. No reflexo do vidro, viu que seu rosto estava em tela cheia na televisão. Escutou novamente muitas vozes. Perdeu as forças, dobrou os joelhos e caiu.

Novecentos e trinta dias depois, Adam despertou do coma. As vozes sumiram, mas o mundo já não era o mesmo.

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