O Jacaré, o Macaco e o Burro.

 

  http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/2/2a/Jose_Ortega_y_Gasset.jpg  Esse breve ensaio foi escrito como trabalho final do curso “A Descoberta do Ensaio”,
ministrado pelo professor Rodrigo Gurgel no final do segundo semestre de 2013.
Por Laudelino Amaral de Oliveira Lima.

    Eu nunca havia lido nem uma única linha de José Ortega y Gasset (vou chamá-lo de Zé) - embora o tivesse na fila de autores a serem descobertos -, até que recebi a missão de destrinchar a seguinte frase do livro “A Rebelião das Massas”, mais especificamente na parte IV, “Prólogo aos franceses”:

“Romper a continuidade com o passado, querer começar de novo, é aspirar a descer e plagiar o orangotango.”
    A simples menção do orangotango, já me fez conhecer um pouco da personalidade do autor. Nota-se que embora crítico, era bem humorado. Percebe-se também, um leve tom sarcástico ao encerrar a questão; como se estivesse tratando longamente do assunto com um interlocutor teimoso.
    Temos que concordar que a frase poderia ser traduzida por:

“Se você fizer isso, estará imitando um macaco!”

    É, ela pertence à categoria de textos que encerram qualquer assunto; coisa que não pretendo fazer por aqui. Vamos sim destrinchar cada pedaço dessa frase, porque ao estudá-la, vi que o assunto é muito sério.

    O prólogo é um termo originalmente usado na tragédia grega, quando um orador enuncia o tema da peça. Um prólogo aos franceses significaria que antes da “tragédia”, o autor tinha um recado específico para esse povo que em um breve período de tempo, já havia experimentado: uma década de Revolução, a ascensão de Robespierre, os Jacobinos, a ditadura do Comitê de Salvação Pública ou Reino de Terror (40 mil execuções), o governo do Diretório, a substituição pelo governo do Consulado, às Guerras Napoleônicas, a Primeira Restauração da Monarquia, a expulsão de Napoleão,  o seu regresso para o Governo dos Cem Dias, a Segunda Restauração da Monarquia Francesa,  a abdicação definitiva de Napoleão e a Revolução de Julho.  Definitivamente, os franceses “começaram de novo” por muitas vezes e o Zé ao publicar o livro em 1930, declarou (com razão) que a humanidade vivia seu apogeu:

“Do século V a 1800 a Europa não consegue ter uma população superior a 180 milhões. De 1800 a 1914 ascende a mais de 460 milhões. O pulo é único na história humana.”

    Zé atribuiu esse salto, às novas técnicas e à democracia liberal. Mas, olhando para os lados às coisas não estavam nada boas. O mundo se recuperava da primeira guerra quando recebeu o impacto da queda da bolsa americana em 1929. Paralelamente alguns já percebiam um abraço macabro formado pela águia nazifascista de um lado e o urso marxista do outro. Um no coração da Europa e o outro transbordando da Rússia em direção ao velho continente. O conflito era inevitável. Ambos os regimes utilizavam o povo como degrau para alcançar a utopia que fosse mais adequada a centralização de poder nas mãos de seus maestros. Zé olhava esse cenário e conseguia distinguir sua vítima e ao mesmo tempo o agente inconsciente: O Homem.

    Embora o fenômeno visto pelo Zé já estivesse em andamento, surgiu na Alemanha algo que estaria acelerando esse processo: A Escola de Frankfurt. Uma espécie de fábrica de padeiros que já chocavam por seis anos uma fornada de serpentes que envenenariam muitas mentes pelo mundo.
    Ainda na Europa, o húngaro Gyorgy Lukacs, e o italiano Antonio Gramsci, tentavam entender porque o comunismo não decolava no ocidente. Sem contato um com o outro, chegaram à mesma conclusão: Existia a tal “Cultura Ocidental” composta pela família centrada na moral judaico-cristã, no Direito Romano e na filosofia grega. Essa tradição impedia o marxismo ser aceito no Ocidente. Passaram então a imaginar estratégias que pudessem utilizar para destruir essas poderosas bases. Surgiu o “Marxismo Cultural”. Mas como fariam isso? Não foi simples nem rápido. Criaram um cupim civilizacional que corroeu a ligação do homem do presente com o que melhor se produziu no passado. Esse novo homem surgiu e o Zé chamou-o de “Massa”. Eu, o chamaria de outra coisa, mas vou explicar.

    Este homem influenciado, dizia que a vida de obrigações e dependências era coisa do passado. Ele tinha apetites infinitos e uma preocupação primária com o seu bem-estar. Possuia opiniões sobre tudo e mesmo sobre assuntos que nunca gastara uma única caloria para entendê-los. Lhe era caro dar razão e esforçava para impor seu pensamento. Ele possuía idéias e as considerava perfeitas. Se alguém lhe provasse que eram estúpidas, arvorava que tê-las era um direito e que não ter razão também o era. Embora pareça estranho diante de uma análise lógica, esse homem que não queria dar razão e nem fazia questão de tê-la, mostrava-se decidido ao impor suas opiniões. Possuía teorias, mas sofria pela incapacidade de expressá-las. A forma de demonstrar era praticando-as. Pacificamente se ninguém se opusesse e com violência caso tentassem impedi-lo. Esse homem vivia cercado pelas benesses da evolução humana conseguidas a muito custo pelos seus antepassados, mas se interessava cada vez menos por seus princípios, ao ponto de não mais percebê-los. Usava-a como se fizesse parte da natureza e acreditava que possuía o direito de tê-las. Era um homem do seu tempo. Era o praticante integral do Carpe Diem (Viva o hoje). Encantava-se diante do espelho; 
    O homem massa por vezes não é um ignorante. Pode ser uma pessoa culta, tecnicamente falando, mas que possui uma completa ignorância acerca dos outros elementos que o cerca. O Zé descreve-o novamente no capítulo “Barbárie da especialização”, quando afirma que o homem das ciências de hoje (1930?) é o protótipo do homem-massa. Cada vez mais se especializa e estreita seu conhecimento em uma única direção. Progressivamente perde cultura. Em contraposição, a padronização da pesquisa e os avanços tecnológicos requerem pessoas cada vez menos especializadas. Eis o desastre da combinação do estreito com o raso, formando o sábio-ignorante:

“um senhor que se comportará em todas as questões que ignora não como um ignorante, mas com toda arrogância de quem em seu campo especial é um sábio (…) Quem quiser poderá observar a estupidez com que pensam, julgam e atual hoje na política, na arte, na religião e nos problemas gerais da vida e do mundo os “homens da ciência” e é claro, além deles, médicos, engenheiros, economistas, professores, etc”.

    Os homens que realmente desejam evoluir, sempre norteiam sua vida por algo superior e ao alcançá-lo, sabe que só o fez, por estar sobre os ombros de gigantes. Olhando a sua volta, descobre que poucos estão presentes no cume; e os que lá chegaram, representam uma minoria excepcional. A humanidade sempre encontrou seus avanços em todas as áreas da ciências e da cultura, nesses pequenos grupos. Eles estão sempre à frente enquanto que outros seguem girando a roda do mundo. É a ordem natural das coisas.  Quando a lógica se inverte e a massa desejosa resolve conduzir seu próprio rumo, vê-se o abandono dos deveres e a locupletação coletiva dos direitos no limite das possibilidades. Diante de qualquer dificuldade, exige que uma força superior o ajude e olhando para cima só encontra a figura do Estado que assume imediatamente e se encarrega de resolvê-la. É a maior ameaça a civilização:

“…a estatização da vida, o intervencionismo do Estado, a absorção de toda espontaneidade social pelo Estado”.

    Esse homem em sua luta por uma quantidade máxima de direitos esquece que todo direito seu, pressupõe um dever de alguém para garantir que essas obrigações sejam cumpridas. O detentor dos meios de imposição de deveres e fornecimentos de direitos acaba por possuir um poder maior que a soma dos elementos daquela sociedade e cresce indefinidamente seguindo sua própria vocação. A liberdade passa a ser a moeda com que se compra abrigo. Vendo esse Leviatã agigantar-se, esse homem aspira fazer parte dele. Começa se servindo e termina por servi-lo. Ao optar por servir um senhor ao invés de um conjunto superior de valores, marcha de volta à caverna para a tristeza de Platão.

“O homem-massa carece simplesmente de moral, que é sempre, por essência, um sentimento de submissão a algo, consciência de serviço e obrigação”.

    Ele é desprovido de valores. Acredita que todo homem tem um preço e calcula o próprio. Seu gosto cultural privilegia o banal em detrimento ao artístico. Os sinais estão a nossa volta: No metrô, existem cadeiras exclusivas para deficientes, gestantes e idosos. O legislador criou uma lei, a empresa criou uma placa e o usuário criou o hábito de não ceder os outros bancos. Meus pais me criaram com o hábito de ceder qualquer banco às mulheres, aos idosos, gestantes, deficientes e a qualquer um que precise. Não tínhamos uma placa em casa e a educação não era imposta por lei.

    Com o tempo, esse homem aprendeu que juntar-se a seus iguais, é conseguir mais. Não importam os meios. Decoram frases de efeitos, gritam por causas ilógicas e atendem ao chamado de “Uni-vos”. Tal arranjo é eficiente por algum tempo, mas os enfraquece por despi-los do individualismo necessário para formação de opinião própria divergente da que lhe é imposta. Inculto e não tendo a mínima noção do valor das coisas do passado, esse homem está sempre disposto a apoiar revoluções que aparecem para jogar tudo fora e criar o novo. Desconsidera o que foi esculpido com o formão do trabalho e o martelo da razão. Tolo, pensa que sua unidade rasteira é algo que lhe fortalece. Rui tal como um arranjo de dominós que de propriedades idênticas e dispostos muito próximos, caem um após o outro sem capacidade de reagir individualmente a qualquer movimento contrario em sua direção. Só lhe resta tombar.
    O ilustre desconhecido filósofo brasileiro Mário Ferreira dos Santos ao falar sobre as origens da decadência grega, toca novamente no cerne da questão:

“Quando a nobreza de Atenas perdeu, e ascendeu a democracia, a luta pelo poder foi imensa. Como a juventude aspirava ao poder, tinha que se preparar e os meios para isso eram a oratória e a eloquência que possibilitavam uma argumentação para os debates. Sábios de todas as partes do mundo grego reuniam-se em Atenas onde encontraram um mercado ávido. A juventude pagava à peso de ouro suas aulas, no intuito de poder dispor de uma argumentação poderosa ante os adversários. A conseqüência foi a queda da juventude como decai em todos os momentos de agitação política perdendo suas ligações com a cultura superior, tornando-se apenas uma massa agitada que vive de palavras de ordem.”

    Se o Zé nos entregou a carteira de identidade do homem massa, o Mário entregou sua ficha corrida e isso nos leva a outro ponto. Nos faz pensar se ele não seria uma constante universal que surge sempre na crista dos ciclos culturais. Se ele não seria uma anomalia natural desse sistema, como é descrito pela entropia da Segunda Lei da Termodinâmica:

“Toda ordem tende ao caos”

    E o Mário termina nos chocando com nossa própria impossibilidade:

“…porém fica a pergunta: como conseguem, se eles estão errados, deteriorar o que está certo? Essa é a grande desgraça da humanidade: o erro tem mais facilidade de propagar-se do que a verdade, é mais fácil propagar-se uma infâmia do que uma boa idéia. É mais fácil destruir do que construir. Essa é uma das condições humanas e uma das nossas grandes impossibilidades.”
    Agora, precisamos salvá-lo!
    O homem?
    Não, esse já está perdido. Eu falo do símio. Voltemos à frase que iniciou esse texto:

“Romper a continuidade com o passado, querer começar de novo, é aspirar a descer e plagiar o orangotango.”

    Infelizmente, terei que discordar do autor. Creio que ele errou o bicho, pois o símio não faz isso. Quando o Orang, (que na língua Malaka significa “Pessoa”) tem contato pela primeira vez com uma banana, creio eu, nunca o veremos comendo a casca enquanto joga o fruto fora. Ou alguma memória genética o ajudará ou ele observará os mais antigos de sua espécie. Geralmente sua mãe.

    Carl Sagan em sua obra Cosmos, nos ensinou que para sobreviverem, os seres vivos fazem coisas inconscientes que já estão escritas nos seus genes. Eles não sabem como, mas digerem o que comem, se reproduzem, correm, atacam, fogem e alguns conseguem até prender a respiração. Essa inteligência está no DNA que possui a função de armazenar e copiar informações. São escritas em um idioma com bilhões de anos de idade. O idioma da vida.
    Todos os organismos do nosso planeta possuem sua biblioteca particular. Quanto mais livros, mais capazes. Um vírus precisa do equivalente a uma simples página de instruções para se reproduzir e infectar. Uma bactéria já usa 100 páginas de informações. Uma simples ameba possui cerca de 4000 páginas. O ser humano possui algo em torno de 1000 livros em cada uma das células do corpo. O nosso corpo inconsciente é muito mais esperto que o nosso corpo consciente. Mas veja, essa enciclopédia é escrita com o lápis do tempo evolutivo, se algo mudar muito rapidamente não existe tempo para adaptação. Para isso temos o cérebro.

     O cérebro humano se desenvolveu de dentro pra fora. A parte mais antiga, o tronco cerebral, possui as rotinas básicas da vida. Cobrindo esse tronco está o complexo “R” (de réptil), que é o lugar da agressão, do ritual, da territorialidade, do sexo e das hierarquias sociais. A sua volta está a parte límbica, desenvolvida antes do surgimento dos macacos. Lá está a fonte das emoções. Mais acima na parte superior, está córtex cerebral, crescendo nos primatas e por milhões de anos. Ali estão a análise crítica, as idéias, as inspirações, a música, a matemática, a arte e a ciência. Aqui é o território de 100 bilhões de neurônios com suas 100 trilhões de conexões. Daria algo como vinte e um milhões de livros.  A vocação para aprender foi a chave da nossa evolução, mas isso não era suficiente, pois mesmo o nosso magnífico cérebro possuía limitações. Chegou um momento que precisávamos saber mais do que a nossa memória poderia guardar. Então nós aprendemos a armazenar informações fora do corpo.
    Inventamos a escrita.
    Ela foi esculpida na pedra, pintada na seda, bambu, raspada em cera, casca de árvore, couro e até em papel, mas sempre um texto por vez. Até que na china entre os séculos dois e seis, o papel encontrou a tinta e blocos de madeira esculpidos, permitindo muitas cópias de um mesmo trabalho. Mais de 1000 anos depois, um alemão de nome Gutenberg inventou algo similar embora muito superior. A prensa, que permitiu em pouco tempo que o ocidente saltasse de alguns milhares de livros escritos à mão, para milhões de livros impressos. O conhecimento ficou acessível a qualquer um que soubesse ler. Já era possível e em larga escala, se conectar com as maiores mentes e os melhores professores de todos os tempos. Fez-se luz. Os livros impressos ampliaram os repositórios do conhecimento de nossa espécie. A capacidade de aprender com o passado expandiu nosso conhecimento de maneira nunca antes imaginada. O ser humano não precisava mais começar de novo a cada dia tal como um animal que por não ter a mesma capacidade, acaba por fazê-lo indefinidamente. Um jacaré para sobreviver amanhã, terá que fazer as mesmas coisas que ontem e hoje, pois lhe resta apenas o tronco cerebral, o instinto, o nosso complexo “R”.
    A busca da sabedoria atemporal é antes de tudo um exercício de humildade e o homem massa, distancia-se da sabedoria de sua espécie e se aproxima do animal. A memória dos erros, disponível para o ser humano, possui grande valor. Olhar o passado e absorver a sabedoria dos que já trilharam a mesma estrada pela qual você passará, é o que nos diferencia. Preservamos assim, nossa língua, tradições e a própria evolução consciente.
    Romper com o passado é tornar o homem, um fraco, um simples, um animal. É aspirar a descer e plagiar um Jacaré, pois o Macaco não faz isso.
    De fato, o Burro quando atenta contra a própria existência, é digno de sarcasmo.

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